terça-feira, 28 de julho de 2009

Ferida exposta

1.


O boi acuado no canto da cerca de arame, amarrado nas quatro patas e na cabeça. Homens fortes segurando o boi. Um sujeito corpulento, com uma marreta na mão, bate várias vezes na cabeça do animal.

A cena não me agradava nem um pouco, mas estático, e como que petrificado, não parava de olhar aquele boi que demorava para morrer.

Então veio alguém e cravou a faca na jugular do boi. Uma, duas, três vezes.

Sangue. Muito sangue. E o grito desesperado do bicho. Naquela agonia, cada minuto, segundo, pareciam séculos. Para o boi e para mim.


2.

Perto do ringue, sinto o cheiro de sangue.
O homem de calção vermelho empurra para as cordas o de calção amarelo, e bate nele como se batesse num tambor em festas. Esguichos de sangue. Nariz, boca, orelhas, olhos. E o juiz nunca termina a luta.

Continua a agonia. É soco, soco e soco. E sangue.

O sujeito de calção amarelo está banhado de sangue e cai. Um, dois, três... tudo gira. Quatro, cinco, seis, sete... O ginásio gira, o ringue gira. Oito, nove... A mente gira. Dez... Escuridão...


3.

O asfalto é pintado de vermelho. Reconheço a cor e o cheiro.

O acidente automobilístico. Uma BMW, um Corsa e uma Ford Ranger. O Corsa ficou todo demolido. E os tripulantes do Corsa também. Morte instantânea. Os condutores da Ford Ranger estão no Hospital. Três em estado grave e dois passam bem. Me embrulha o estômago. Vomito ali mesmo, no asfalto vermelho de sangue.


4.


Um filme sinistro que expõe os ferimentos da vida como feridas abertas. Angústia, lesão psicológica. Reminiscências de cor e de cheiro. O cheiro é forte e característico. Vermelho e quente.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Perplexidade do cotidiano


Não sei quanto tempo faz que não me alimento. Mais de 48 horas? E o estômago vazio já pede alguma coisa. Mesmo com o fígado rejeitando, o que eu mais quero agora é beber algo forte. Qualquer porcaria serve.

Caminho com dificuldade nesse formigueiro da Voluntários da Pátria. Essa gente me cansa. Sem falar dos pobres-diabos que se arrastam pela calçada, e que me olham como se eu fizesse parte dessa raça.

E não bastasse esses desprezíveis, ainda tenho de ouvir “Fábrica-de-calcinha, vale-vale-vale-vale, compro-vendo-ouro, corte-de-cabelo, piercing-tatuagem, vale-vale-vale-vale...”

Gritaria que não acaba mais.

Não sei até onde consigo chegar. Até onde minhas pernas me levam. Quanto minha cabeça aguenta.

Zonzo, muito zonzo...

BUMMM!!!

Estrondo!...

Com o choque do encontrão que recebo, não sei de quem, caio sobre uma banca de cds e dvs piratas.

Putaqueopariu!,” diz alguém.

“Tu destruiu minha mesa e quebrou os cds e dvds, seu puto, desgraçado!”, grita o dono da banca.
Tudo gira em volta. Levanto com dificuldade e caio outra vez. Fico estendido no chão.

“O cara que esbarrou nele assaltou aquela loja ali”, fala uma voz queixosa.

“Ele estava junto com o assaltante”, grita um falso delator.

“Ninguém vai ajudar esse homem?”, pergunta um indivíduo complacente.

Não sei de onde essa energia, mas levanto e saio em disparada ao Mercado Público.

Terminal Parobé. Olho para trás e percebo que não fui seguido.

Ônibus. Pessoas. Música...

Largo Glênio Peres. Chalé.

Preciso beber alguma coisa. Tosse. Tosse. Tosse.

Música do Chalé: “Eu não sei dizer/ o que quer dizer/ o que vou dizer/ eu amo você/ mas não sei o que....”

Largo Glênio Peres. Um homem de terno e gravata, com uma Bíblia na mão: “Glória, glória, glória, aleluia... louvemos ao Senhor...”

As músicas se misturam na minha cabeça. Começo a ficar atordoado...

Alguém me abraça com muita força. A lâmina rasga o meu peito... A dor é intensa...

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Cotidihumano


Ficou horas na frente do espelho.
Estátua.

Quando se deu por conta viu um rosto sedutor. Não gostou disso. Procurou outros traços para satisfazer-se.

Olhou profundamente aquele par de olhos negros e viu ondas negras - no ir e vir - da imensidão do mar. Por um tempo contemplou aquela imagem.

O mar revolto quis sair de dentro do espelho.

As pernas amoleceram, o coração disparou e os olhos queriam sair das órbitas.
Aguentou firme. Sobreviveu ao naufrágio.

O mesmo rosto atraente estava ali, diante do espelho. Carecia de intenções que o tirasse dali. Tinha pensamentos secretos, e queria mudar alguma coisa em si.

Não suportaria por muito tempo naquela posição. As pernas, agora doíam muito. Sentia prazer na dor, mas logo perderia o equilíbrio e cairia .

Turbilhão de pensamentos e sentimentos. Ataque de ansiedade, febre, delírio, lembrança de outras angústias e insônias. Um trator passando por cima.

Caiu.

Estendido no chão, um vendaval de imagens.

Levantou-se e olhou mais uma vez o espelho.

“De agora em diante vou ser outro”, ele disse para o espelho.

Deu um grunhido e depois uma gargalhada medonha.

“Vou ser o que eu inventei, não o que criaram para mim”, continuou ele.

Foi ao banheiro com uma sacola e abriu as caixinhas. Lexotan, Lorax. Dalmadorme, Dormonid. Rivotril. Válium. Aspirina, Paracetamol, Dorflex, etc. O vaso engoliu tudo.

Pegou todo o dinheiro que, à tarde havia sacado no caixa eletrônico, e foi para um bar.

sábado, 4 de julho de 2009

Currículo

Para Zuco

Já cansei de deixar meu currículo no jornal F, no G e no H. O meu cu é que não vou deixar pra esses filhosdaputa.

José Fonseca. Formado em Jornalismo. Quero dizer, recém formado. Terminei meu estágio há três dias. Não fiquei na empresa. Política suja. Filhosdaputa.

360 reais e ainda os filhosdaputa descontavam vale-transporte. E sem direito a nada.
Por isso que eu saí louco por aí. Distribuindo currículo por tudo que é canto.

Adiantou?

Nem precisa responder.

Meu último copo de cana, porra! Esses filhosdaputa. Mas eu vou aproveitar cada gole. Pensar um pouco e depois decido o que fazer.

Como se fosse fácil.

Plim!, resolvi. Porra, não é bem assim. Esses filhosdaputa.

E vem tudo junto. Pra casa é que não vou, pois posso piorar ainda mais as condições de saúde dos velhos.

Só fiz o meu trabalho. Não o meu - o deles. Quando as informações não eram do agrado deles, eu falava o que eles queriam. Sem mudar uma vírgula. E muitas vezes colocava belas palavras na boca deles. Política podre. Filhosdaputa.

“Nunca vi um jornalista formado falar assim, usar gírias e ter um vocabulário desses”, o filhodaputa disse, rindo.

Chegaaa!!!

Tomei o último gole de cana, peguei a arma do bolso da jaqueta e dei um tiro na boca daquele filhodaputa. Era um filhodaputa como todos os filhosdaputa que conheci em toda a minha vida.

Nunca mais fala uma coisa dessas, e não ri dos outros, seu filhodaputa.

Agora sou outro. E com outro currículo.

Saí daquele bar de merda, sorrindo como se nada tivesse acontecido.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Literatura, cinema, gastronomia e outros sensuais




Três horas. Madrugada de sábado. Jean-Paul e Valentina na cozinha. Valentina com o livro de contos de Marçal Aquino no colo. Sorri.


O amor e outros objetos pontiagudos”.


Jean-Paul serve a taça de vinho e entrega a Valentina, a beija, toma um gole de vinho e vai para as panelas.


Posso jurar que Marçal Aquino teve inspiração em “Loucos de Amor” para escrever o “Partilha I” e “Partilha II”, disse Valentina.


O filme?”, perguntou.


Sim, e além disso, foi roteirizado, nada menos, nada mais por John Cassavetes”, ela falou demonstrando seu enorme conhecimento em cinema.


Gosto do “A Morte de um Bookmaker Chinês”, falou.


Ele fez o roteiro e dirigiu esse filme”, ela disse com um largo sorriso.


Mas ele atuou em outros filmes, não é isso?”, perguntou.

Atuou bem mais”, ela disse.


Jean-Paul serve mais vinho para Valentina e volta às panelas.


Depois de refogar bem o alho e a cebola, Jean-Paul coloca o brócolis e o molho branco na panela. O talharim já está cozido em outro recipiente, aguardando a mistura.


Em “Loucos de Amor”, quem dirige é o filho Nick Cassavetes”, continuou Valentina.


Acho interessante a paixão de Ediee e Maureen. Os dois sem grana e loucos um pelo outro”, Jean-Paul comentou quando já misturava a massa com o molho branco.


Quando sai da prisão...”, Valentina comenta.


Quê?”


A prisão. Quando sai da prisão, Eddie descobre que ela se casou com Joey, um homem que amava loucamente Maureen quanto ele”, continuou Valentina.


Entendi. A trama é a história da prisão”, disse Jean-Paul.


Sim, meu amor, em “Partilha I” e Partilha II” os homens que regressam da prisão e vão em busca de suas mulheres”, disse Valentina.

Só que num dos contos o ex-presidiário se dá bem com a mulher e, no outro, se dá mal,” concluiu Jean-Paul.

A mesa já estava arrumada.


Que tal o brócolis ao molho branco?”, perguntou Jean-Paul.


Agora vou saber se você vai se dar bem ou mal”, respondeu Valentina.