domingo, 10 de junho de 2012

Não é uma tarde como todas as tardes

Seria mais uma tarde como outra qualquer, num quarto de hotel  de uma cidade interiorana, não fosse uma visita inesperada.  O mapa de couro, roto, com alguns furos, colado na parede.  O globo geográfico  com luz no interior, as  oito peças do Forte Apache Gulliver, entre soldados e índios montados em seus cavalos, uma estatueta de Dom Quixote e Sancho Pança, todos bem distribuídos na mesa velha e carcomida pelos cupins.

Por décadas, depois da aposentadoria,  viajei por esse país afora carregando comigo os objetos que fizeram parte de minha infância. Conheci cada canto, lugarejo  e até mesmo  vilas que não aparecem no mapa do Brasil. Me acostumei com os lugares mais inusitados e obscuros.  Sou  um clandestino em cada cidade que  chego.  A minha sina tem sido fugir. De tempos em tempos, quando percebo que algo vai acontecer, talvez alguma reminiscência que provoca a melancolia, pago a conta do hotel e vou para outra cidade, uma grota, ou o fim do mundo, onde ninguém me conhece.

Mais uma tarde estaria a encher-me de lembranças de tempos idos, não fosse o chamado urgente na portaria.  É raro isso acontecer nos meus horários de reclusão, já que tenho minhas atividades determinadas, do nascer do sol ao anoitecer. De manhã caminho ao léu pelas ruas da cidade ou pelos becos, exercito os músculos de um corpo gasto, envelhecido, na luta para não deixar entrevar. À tarde, como de costume, deixo-me delirar no quarto do hotel com os fantasmas do passado. No turno da noite esqueço quem sou ou quem fui, aparo a barba, coloco o meu melhor terno e vou gastar parte do meu dinheiro em diversão e prazer. Tenho hora para voltar e para dormir. Caso contrário, perco-me completamente até não haver um pingo de sobriedade.

Não é uma tarde como todas as tardes. É uma tarde insólita, uma tarde de visita para quem nunca recebe visitas. Ceder não faz parte de minha vontade, mas aceito falar com o homem que me espera, e já começo a pressentir que não sou mais o mesmo.  Pego a jaqueta de lã, o gorro e os óculos escuros, dou uma rápida olhada para meus pertences espalhados pelo quarto, e vou ao encontro daquele que tanto me aguarda.
O homem, apesar do início da calvície e da brancura tomando conta dos fios de cabelo que ainda lhe restam, é bem mais novo do que eu. Me olha de alto a baixo. Estendo o braço para um cumprimento costumeiro de cidades provincianas e sinto a palma da mão suada de um suor de décadas conhecido.

Paulo, ele diz no aperto de mãos. Péricles, digo, e uma nuvem de recordações desconexas principiam na minha mente. Pigarreio.  Ele me convida para um café no bar do outro lado da rua. Caminho como autômato, ao lado do homem, buscando remanescentes de memória de uma época distante, e ao mesmo tempo presente e difusa, povoada de brinquedos e brincadeiras, personagens heróicos, disputas adolescentes, namoros e aventuras, desavenças e desencontros.

No bar, as palavras eram mais que palavras, eram enigmas desvendados. Um vaivém de perguntas e respostas, revelando um passado jamais esquecido, mas entranhado em nossos seres. E cada vez que Paulo colocava na mesa, entre um gole e outro de uísque, um fato decorrido, percebi que a vida toda, Paulo e eu, Péricles, havíamos nos transformado em perseguidor e perseguido.  Éramos da mesma prole e nos separamos por décadas, levando o rancor em nossos corações, por motivos talvez banais, mas que nos transformou em pessoas fechadas, estranhas e inflexíveis.

Agora parece o fim das fugas e perseguições. Não é  The end de nenhum filme triste ou de aventura. Não é o derradeiro ou o nunca mais. E não é o ponto final da nossa história. Não é o fim, nem o meio. É o começo. Não é uma tarde como todas as tardes. É uma tarde de perdão.






quinta-feira, 22 de março de 2012

Fue una larga noche



La noche es muy larga y alucinante. Solo en su cuarto, mirando la oscuridad, Arthur siente la falta y la distancia de Hellen. Su cuerpo no está junto a ella. Sin embargo, el perfume y el calor se disemina por la habitación.

Sí. La noche es larga. Arthur no tiene los hermosos y sedosos cabellos de su bella al deslizamiento de sus manos . No tiene los abrazos y los besos.

La noche es fría y camina en despacio, y Arthur ya no es Arthur, pero Ulises. O Odiseo. Y ahora Hellen – que duerme un sueño profundo en otra habitación – es Penélope, una representación de la fidelidad conyugal.

La noche es lento, pausado y lánguido. Arthur palpa la pared al encuentro del conmutador. No hay ninguna luz eléctrica. Todavía sigue palpando hasta llegar a la ventana. Abre la ventana y mira la luna brillante. “¡ Yo me gusta mucho besar Hellen a la luz de la Luna!”, dijo él a la luna. Pero ella no está allí. Y él siente un temblor en su cuerpo.

“¿ Por qué estoy tan solo?”

No tiene ninguna respuesta. La Luna ya no tiene más gracia. Escucha los aullidos del lobo, y recuerda la Loba de la Estepa, la propria Hellen. “¿No debería estarse en su casa, durmiendo?” Cuando dejó el hospital, los médicos advirtieron mucho reposo. “¿ La Loba se está vagando por la noche?”

La noche ha sido muy lento. Y las horas también . Esas horas de expectación son similares a los diez años de Ulises, lejos de Penélope.

Arthur no tiene otra opción. Cierra la ventana y se va a la cama. Él no duerme. La cama es frío. Él se revuelve en la cama sin Hellen. Vuelve y revuelve, en la larga noche.

El sonido de radiodespertador es alto e intenso, así como la emoción del amanecer es intensa. Ahora Arthur he feliz porque la noche se fue, y ahora puede encontrarse con su amor.
Arthur sale de la cama, se va al baño, y vuelve rápidamente al cuarto, viste su ropa y se va al encuentro de Hellen, repitiendo innúmeras veces: “¡ Fue una larga noche!...”

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Como tudo começa


para Cátia Cylene

Todos aqueles dias foram intensos e maravilhosos como nunca. Lembro muito bem quando nossas férias terminaram. Eu saí tão apressado da sua casa, dei-lhe um beijo e um abraço bem forte e voei para a rodoviária. Levaria 50 minutos até Porto Alegre. Nesse tempo fiquei lembrando de toda a semana que passamos juntos. Tudo que fizemos e com a maior intensidade.
Dias e noites. Já não sabíamos que dia era e nem se estava escuro ou claro lá fora. Ficamos ilhados dentro de casa. Tínhamos estoque de comida, o suficiente para suportar uns 10 dias. Bons livros e bons vinhos. E desejo um pelo outro.
No nosso ler-beijar-ler, começamos com Rayuela. Cortázar nos encantou desde o começo com Maga e Horácio. Um argentino e uma uruguaia, que vivem um romance em Paris, a cidade dos eternos namorados. Muito jazz, bebida, filosofia, literatura. O Clube da Serpente.
Sentados no sofá verde. Livro, vinho argentino e duas taças.
Oh, Maga! Cada mulher parecida com você provocava como que o silêncio ensurdecedor...”, eu li.
“Para com isso, leia”, ela reclamou sorrindo.
“Estou lendo! É isso mesmo que está escrito”, repliquei.
Pausa.
Beijo.
“Está bem, vamos, continue”, ela disse.
Continuei a leitura. Entre uma taça e outra de vinho, vez em quando um breve comentário e o beijo.
Tu est ma Maga”, eu falei.
Et toi mon Horacio”, ela me disse.
Rimos. Nos abraçamos e nos beijamos intensamente.
Pausa maior.
Eu não disse, mas pensei em dizer j'aime ta mince silhouette, que é a mais linda de todas que já vi.
La dispute du désir et de l'affection. Ah mon amour, je te veux, veux
Ela sorriu para mim, me abraçou com ternura e tirou o livro de minhas mãos. Nos beijamos loucamente e fizemos amor ali, no tapete, em frente ao sofá verde.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Triste chão de um mundo tão desigual


A princípio uma música melancólica e trevas. Ritmo de lamento e gritos abafados. Penúmbra e imagens tomando forma. Nasce o dia e Adriano pisa no chão batido do barraco. Chão de garrafas vazias ou com água dentro. Chão de papéis, latas e folhas úmidas. Chão de cadeiras estropiadas e sofás rasgados. Chão de chaleiras caídas e enferrujadas. Chão de cães sarnentos e magros. Chão de ratos que correm para as tocas ou para os montes de papéis.
Música triste, num ritmo desordenado como a vida de Adriano. Na mesa feita de caixotes de madeira, crucifixo de metal, São Jorge de gesso, sol e lua de plástico, xícaras de porcelana, canecos de alumínio, pratos de plástico, facas velhas, sem cabo e tocos de vela.

Adriano observa com ar sorumbático o seu tesouro, espalhado na mesa. Os olhos percorrem, um a um, os troféus. Descontente, se despede de todos e sai. Sabe que falta algo para completar a sua coleção. E sabe que só retornará ao barraco com mais uma preciosidade.
As pernas fracas de Adriano na estrada de terra, o levam para outro mundo. Ele sente a podridão dos dejetos e dos animais mortos no caminho, e ouve a música lúgubre que tanto conhece. Caminha com dificuldade, enquanto caminhões passam por ele e levantam nuvens de poeira.
O caminho é longo como uma música sem-fim. São quilômetros e quilômetros de chão, desde a terra batida e seca - onde o diabo perdeu as botas - até o asfalto e o formigueiro da grande cidade. Adriano jamais desiste do seu ideal. Chão e mais chão. Ele vai com propósito.
Movimento de carros, trens, ônibus, pessoas. A cidade é desordenada e ruidosa. Todos correm, parecem estar com uma pressa danada. Menos Adriano, que caminha lentamente e passa por templos religiosos, garagens de ônibus, bares e carros de som anunciando produtos.
Adriano para na vitrina de uma padaria e crava os olhos nos doces e salgados, expostos nos balcões de vidro. O estômago inquieto reclama alimento. O vazio precisa ser preenchido. O dono do estabelecimento olha para Adriano com desdém e chama o segurança. Adriano sai e continua com o andar vagaroso.
Serras elétricas, betoneiras, bate-estacas. E o funcionamento das máquinas. Nada disso perturba Adriano, que transita por edifícios em construção. Passa por pessoas com capacetes na cabeça, manipulando ferramentas, por pessoas com abafadores de ruído.
Como um imã, a lata de lixo do outro lado da rua, atrai o olhar de Adriano. O som daquela música carregada, sombria, tão conhecida de Adriano, agora com o volume mais alto nos ouvidos e na mente. As pernas débeis o levam até a calçada, passam por curiosos que o observam com medo ou repulsa.
As mãos de Adriano reviram a lata de lixo. As mesmas mãos retiram de dentro tudo que ele necessita e deseja. Dois pedaços de pizza bolorenta, três pedaços de asa de anjo, uma Bíblia Sagrada, uma barriga de Buda, meio sanduiche natural, um livro de um escritor argentino, uma garrafa de vinho aberta, com dois goles e uma pedra que brilha.
Satisfeito, Adriano decide voltar ao barraco. Sabe que é uma longa viagem, mas segue sem pressa, contente com seus novos troféus. Porém a safisfação dura pouco para Adriano. Um carro para diante dele, saltam de dentro do carro, quatro jovens com tacos de beisebol. Eles são rápidos. Batem sem dó nem piedade em Adriano. Entram no carro e os pneus cantam, quando o veículo dobra a esquina.
No mesmo chão em que pessoas inquietas pisam, chão de latas de lixo, chão de miséria, chão de mundos opostos, no mesmo chão jaz o corpo de Adriano. O triste chão de um mundo tão desigual.