sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Triste chão de um mundo tão desigual


A princípio uma música melancólica e trevas. Ritmo de lamento e gritos abafados. Penúmbra e imagens tomando forma. Nasce o dia e Adriano pisa no chão batido do barraco. Chão de garrafas vazias ou com água dentro. Chão de papéis, latas e folhas úmidas. Chão de cadeiras estropiadas e sofás rasgados. Chão de chaleiras caídas e enferrujadas. Chão de cães sarnentos e magros. Chão de ratos que correm para as tocas ou para os montes de papéis.
Música triste, num ritmo desordenado como a vida de Adriano. Na mesa feita de caixotes de madeira, crucifixo de metal, São Jorge de gesso, sol e lua de plástico, xícaras de porcelana, canecos de alumínio, pratos de plástico, facas velhas, sem cabo e tocos de vela.

Adriano observa com ar sorumbático o seu tesouro, espalhado na mesa. Os olhos percorrem, um a um, os troféus. Descontente, se despede de todos e sai. Sabe que falta algo para completar a sua coleção. E sabe que só retornará ao barraco com mais uma preciosidade.
As pernas fracas de Adriano na estrada de terra, o levam para outro mundo. Ele sente a podridão dos dejetos e dos animais mortos no caminho, e ouve a música lúgubre que tanto conhece. Caminha com dificuldade, enquanto caminhões passam por ele e levantam nuvens de poeira.
O caminho é longo como uma música sem-fim. São quilômetros e quilômetros de chão, desde a terra batida e seca - onde o diabo perdeu as botas - até o asfalto e o formigueiro da grande cidade. Adriano jamais desiste do seu ideal. Chão e mais chão. Ele vai com propósito.
Movimento de carros, trens, ônibus, pessoas. A cidade é desordenada e ruidosa. Todos correm, parecem estar com uma pressa danada. Menos Adriano, que caminha lentamente e passa por templos religiosos, garagens de ônibus, bares e carros de som anunciando produtos.
Adriano para na vitrina de uma padaria e crava os olhos nos doces e salgados, expostos nos balcões de vidro. O estômago inquieto reclama alimento. O vazio precisa ser preenchido. O dono do estabelecimento olha para Adriano com desdém e chama o segurança. Adriano sai e continua com o andar vagaroso.
Serras elétricas, betoneiras, bate-estacas. E o funcionamento das máquinas. Nada disso perturba Adriano, que transita por edifícios em construção. Passa por pessoas com capacetes na cabeça, manipulando ferramentas, por pessoas com abafadores de ruído.
Como um imã, a lata de lixo do outro lado da rua, atrai o olhar de Adriano. O som daquela música carregada, sombria, tão conhecida de Adriano, agora com o volume mais alto nos ouvidos e na mente. As pernas débeis o levam até a calçada, passam por curiosos que o observam com medo ou repulsa.
As mãos de Adriano reviram a lata de lixo. As mesmas mãos retiram de dentro tudo que ele necessita e deseja. Dois pedaços de pizza bolorenta, três pedaços de asa de anjo, uma Bíblia Sagrada, uma barriga de Buda, meio sanduiche natural, um livro de um escritor argentino, uma garrafa de vinho aberta, com dois goles e uma pedra que brilha.
Satisfeito, Adriano decide voltar ao barraco. Sabe que é uma longa viagem, mas segue sem pressa, contente com seus novos troféus. Porém a safisfação dura pouco para Adriano. Um carro para diante dele, saltam de dentro do carro, quatro jovens com tacos de beisebol. Eles são rápidos. Batem sem dó nem piedade em Adriano. Entram no carro e os pneus cantam, quando o veículo dobra a esquina.
No mesmo chão em que pessoas inquietas pisam, chão de latas de lixo, chão de miséria, chão de mundos opostos, no mesmo chão jaz o corpo de Adriano. O triste chão de um mundo tão desigual.

Nenhum comentário:

Postar um comentário