domingo, 10 de junho de 2012

Não é uma tarde como todas as tardes

Seria mais uma tarde como outra qualquer, num quarto de hotel  de uma cidade interiorana, não fosse uma visita inesperada.  O mapa de couro, roto, com alguns furos, colado na parede.  O globo geográfico  com luz no interior, as  oito peças do Forte Apache Gulliver, entre soldados e índios montados em seus cavalos, uma estatueta de Dom Quixote e Sancho Pança, todos bem distribuídos na mesa velha e carcomida pelos cupins.

Por décadas, depois da aposentadoria,  viajei por esse país afora carregando comigo os objetos que fizeram parte de minha infância. Conheci cada canto, lugarejo  e até mesmo  vilas que não aparecem no mapa do Brasil. Me acostumei com os lugares mais inusitados e obscuros.  Sou  um clandestino em cada cidade que  chego.  A minha sina tem sido fugir. De tempos em tempos, quando percebo que algo vai acontecer, talvez alguma reminiscência que provoca a melancolia, pago a conta do hotel e vou para outra cidade, uma grota, ou o fim do mundo, onde ninguém me conhece.

Mais uma tarde estaria a encher-me de lembranças de tempos idos, não fosse o chamado urgente na portaria.  É raro isso acontecer nos meus horários de reclusão, já que tenho minhas atividades determinadas, do nascer do sol ao anoitecer. De manhã caminho ao léu pelas ruas da cidade ou pelos becos, exercito os músculos de um corpo gasto, envelhecido, na luta para não deixar entrevar. À tarde, como de costume, deixo-me delirar no quarto do hotel com os fantasmas do passado. No turno da noite esqueço quem sou ou quem fui, aparo a barba, coloco o meu melhor terno e vou gastar parte do meu dinheiro em diversão e prazer. Tenho hora para voltar e para dormir. Caso contrário, perco-me completamente até não haver um pingo de sobriedade.

Não é uma tarde como todas as tardes. É uma tarde insólita, uma tarde de visita para quem nunca recebe visitas. Ceder não faz parte de minha vontade, mas aceito falar com o homem que me espera, e já começo a pressentir que não sou mais o mesmo.  Pego a jaqueta de lã, o gorro e os óculos escuros, dou uma rápida olhada para meus pertences espalhados pelo quarto, e vou ao encontro daquele que tanto me aguarda.
O homem, apesar do início da calvície e da brancura tomando conta dos fios de cabelo que ainda lhe restam, é bem mais novo do que eu. Me olha de alto a baixo. Estendo o braço para um cumprimento costumeiro de cidades provincianas e sinto a palma da mão suada de um suor de décadas conhecido.

Paulo, ele diz no aperto de mãos. Péricles, digo, e uma nuvem de recordações desconexas principiam na minha mente. Pigarreio.  Ele me convida para um café no bar do outro lado da rua. Caminho como autômato, ao lado do homem, buscando remanescentes de memória de uma época distante, e ao mesmo tempo presente e difusa, povoada de brinquedos e brincadeiras, personagens heróicos, disputas adolescentes, namoros e aventuras, desavenças e desencontros.

No bar, as palavras eram mais que palavras, eram enigmas desvendados. Um vaivém de perguntas e respostas, revelando um passado jamais esquecido, mas entranhado em nossos seres. E cada vez que Paulo colocava na mesa, entre um gole e outro de uísque, um fato decorrido, percebi que a vida toda, Paulo e eu, Péricles, havíamos nos transformado em perseguidor e perseguido.  Éramos da mesma prole e nos separamos por décadas, levando o rancor em nossos corações, por motivos talvez banais, mas que nos transformou em pessoas fechadas, estranhas e inflexíveis.

Agora parece o fim das fugas e perseguições. Não é  The end de nenhum filme triste ou de aventura. Não é o derradeiro ou o nunca mais. E não é o ponto final da nossa história. Não é o fim, nem o meio. É o começo. Não é uma tarde como todas as tardes. É uma tarde de perdão.






quinta-feira, 22 de março de 2012

Fue una larga noche



La noche es muy larga y alucinante. Solo en su cuarto, mirando la oscuridad, Arthur siente la falta y la distancia de Hellen. Su cuerpo no está junto a ella. Sin embargo, el perfume y el calor se disemina por la habitación.

Sí. La noche es larga. Arthur no tiene los hermosos y sedosos cabellos de su bella al deslizamiento de sus manos . No tiene los abrazos y los besos.

La noche es fría y camina en despacio, y Arthur ya no es Arthur, pero Ulises. O Odiseo. Y ahora Hellen – que duerme un sueño profundo en otra habitación – es Penélope, una representación de la fidelidad conyugal.

La noche es lento, pausado y lánguido. Arthur palpa la pared al encuentro del conmutador. No hay ninguna luz eléctrica. Todavía sigue palpando hasta llegar a la ventana. Abre la ventana y mira la luna brillante. “¡ Yo me gusta mucho besar Hellen a la luz de la Luna!”, dijo él a la luna. Pero ella no está allí. Y él siente un temblor en su cuerpo.

“¿ Por qué estoy tan solo?”

No tiene ninguna respuesta. La Luna ya no tiene más gracia. Escucha los aullidos del lobo, y recuerda la Loba de la Estepa, la propria Hellen. “¿No debería estarse en su casa, durmiendo?” Cuando dejó el hospital, los médicos advirtieron mucho reposo. “¿ La Loba se está vagando por la noche?”

La noche ha sido muy lento. Y las horas también . Esas horas de expectación son similares a los diez años de Ulises, lejos de Penélope.

Arthur no tiene otra opción. Cierra la ventana y se va a la cama. Él no duerme. La cama es frío. Él se revuelve en la cama sin Hellen. Vuelve y revuelve, en la larga noche.

El sonido de radiodespertador es alto e intenso, así como la emoción del amanecer es intensa. Ahora Arthur he feliz porque la noche se fue, y ahora puede encontrarse con su amor.
Arthur sale de la cama, se va al baño, y vuelve rápidamente al cuarto, viste su ropa y se va al encuentro de Hellen, repitiendo innúmeras veces: “¡ Fue una larga noche!...”

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Como tudo começa


para Cátia Cylene

Todos aqueles dias foram intensos e maravilhosos como nunca. Lembro muito bem quando nossas férias terminaram. Eu saí tão apressado da sua casa, dei-lhe um beijo e um abraço bem forte e voei para a rodoviária. Levaria 50 minutos até Porto Alegre. Nesse tempo fiquei lembrando de toda a semana que passamos juntos. Tudo que fizemos e com a maior intensidade.
Dias e noites. Já não sabíamos que dia era e nem se estava escuro ou claro lá fora. Ficamos ilhados dentro de casa. Tínhamos estoque de comida, o suficiente para suportar uns 10 dias. Bons livros e bons vinhos. E desejo um pelo outro.
No nosso ler-beijar-ler, começamos com Rayuela. Cortázar nos encantou desde o começo com Maga e Horácio. Um argentino e uma uruguaia, que vivem um romance em Paris, a cidade dos eternos namorados. Muito jazz, bebida, filosofia, literatura. O Clube da Serpente.
Sentados no sofá verde. Livro, vinho argentino e duas taças.
Oh, Maga! Cada mulher parecida com você provocava como que o silêncio ensurdecedor...”, eu li.
“Para com isso, leia”, ela reclamou sorrindo.
“Estou lendo! É isso mesmo que está escrito”, repliquei.
Pausa.
Beijo.
“Está bem, vamos, continue”, ela disse.
Continuei a leitura. Entre uma taça e outra de vinho, vez em quando um breve comentário e o beijo.
Tu est ma Maga”, eu falei.
Et toi mon Horacio”, ela me disse.
Rimos. Nos abraçamos e nos beijamos intensamente.
Pausa maior.
Eu não disse, mas pensei em dizer j'aime ta mince silhouette, que é a mais linda de todas que já vi.
La dispute du désir et de l'affection. Ah mon amour, je te veux, veux
Ela sorriu para mim, me abraçou com ternura e tirou o livro de minhas mãos. Nos beijamos loucamente e fizemos amor ali, no tapete, em frente ao sofá verde.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Triste chão de um mundo tão desigual


A princípio uma música melancólica e trevas. Ritmo de lamento e gritos abafados. Penúmbra e imagens tomando forma. Nasce o dia e Adriano pisa no chão batido do barraco. Chão de garrafas vazias ou com água dentro. Chão de papéis, latas e folhas úmidas. Chão de cadeiras estropiadas e sofás rasgados. Chão de chaleiras caídas e enferrujadas. Chão de cães sarnentos e magros. Chão de ratos que correm para as tocas ou para os montes de papéis.
Música triste, num ritmo desordenado como a vida de Adriano. Na mesa feita de caixotes de madeira, crucifixo de metal, São Jorge de gesso, sol e lua de plástico, xícaras de porcelana, canecos de alumínio, pratos de plástico, facas velhas, sem cabo e tocos de vela.

Adriano observa com ar sorumbático o seu tesouro, espalhado na mesa. Os olhos percorrem, um a um, os troféus. Descontente, se despede de todos e sai. Sabe que falta algo para completar a sua coleção. E sabe que só retornará ao barraco com mais uma preciosidade.
As pernas fracas de Adriano na estrada de terra, o levam para outro mundo. Ele sente a podridão dos dejetos e dos animais mortos no caminho, e ouve a música lúgubre que tanto conhece. Caminha com dificuldade, enquanto caminhões passam por ele e levantam nuvens de poeira.
O caminho é longo como uma música sem-fim. São quilômetros e quilômetros de chão, desde a terra batida e seca - onde o diabo perdeu as botas - até o asfalto e o formigueiro da grande cidade. Adriano jamais desiste do seu ideal. Chão e mais chão. Ele vai com propósito.
Movimento de carros, trens, ônibus, pessoas. A cidade é desordenada e ruidosa. Todos correm, parecem estar com uma pressa danada. Menos Adriano, que caminha lentamente e passa por templos religiosos, garagens de ônibus, bares e carros de som anunciando produtos.
Adriano para na vitrina de uma padaria e crava os olhos nos doces e salgados, expostos nos balcões de vidro. O estômago inquieto reclama alimento. O vazio precisa ser preenchido. O dono do estabelecimento olha para Adriano com desdém e chama o segurança. Adriano sai e continua com o andar vagaroso.
Serras elétricas, betoneiras, bate-estacas. E o funcionamento das máquinas. Nada disso perturba Adriano, que transita por edifícios em construção. Passa por pessoas com capacetes na cabeça, manipulando ferramentas, por pessoas com abafadores de ruído.
Como um imã, a lata de lixo do outro lado da rua, atrai o olhar de Adriano. O som daquela música carregada, sombria, tão conhecida de Adriano, agora com o volume mais alto nos ouvidos e na mente. As pernas débeis o levam até a calçada, passam por curiosos que o observam com medo ou repulsa.
As mãos de Adriano reviram a lata de lixo. As mesmas mãos retiram de dentro tudo que ele necessita e deseja. Dois pedaços de pizza bolorenta, três pedaços de asa de anjo, uma Bíblia Sagrada, uma barriga de Buda, meio sanduiche natural, um livro de um escritor argentino, uma garrafa de vinho aberta, com dois goles e uma pedra que brilha.
Satisfeito, Adriano decide voltar ao barraco. Sabe que é uma longa viagem, mas segue sem pressa, contente com seus novos troféus. Porém a safisfação dura pouco para Adriano. Um carro para diante dele, saltam de dentro do carro, quatro jovens com tacos de beisebol. Eles são rápidos. Batem sem dó nem piedade em Adriano. Entram no carro e os pneus cantam, quando o veículo dobra a esquina.
No mesmo chão em que pessoas inquietas pisam, chão de latas de lixo, chão de miséria, chão de mundos opostos, no mesmo chão jaz o corpo de Adriano. O triste chão de um mundo tão desigual.

domingo, 20 de novembro de 2011

Um pai para chamar de pai


Olhos escuros, franzino, irrequieto. Calça curta na altura do joelho, camisa branca manchada de sangue e chinelos Havaianas. À tiracolo uma bolsa de algodão, velha e suja, com o material escolar dentro.
O bilhete da professora não o preocupa mais, como das outras vezes. Está cansado de tudo. Do trabalho pesado que é obrigado a fazer depois da aula. As repreensões e os xingamentos dos adultos. As caçoadas dos colegas de aula.
Cansado de ter responsabilidades.
Cansado de ter apenas nove anos.
Cansado de não poder brincar.
Decidido. Não quer cumprir as regras impostas. Nunca mais. Pelo menos enquanto for criança.
Vaga pelas ruas, sem rumo. Olhos fixos nas vitrines de brinquedos. Deseja tê-los todos para si. No caminho de volta para casa, avista uma loja especializada em brinquedos de madeira. Nome muito engraçado. Brinquedos João Alma de Criança.
Aproxima-se da loja. Estático na porta por um longo tempo. Um homem com o rosto grande, caricato e jovial, vem atendê-lo.
Como que paralisado e sem falar nada, o menino observa o homem com admiração. Aquela figura diante dos seus olhos parece ter vindo de algum desenho animado.
O homem se apresenta como João Alma de Criança, e conduz o menino para dentro do estabelecimento.
Casinhas, jogos, tabuleiros, quebra-cabeças, carrinhos de corrida, aviões, caminhões. O caminhão! Tudo bem colorido. João Alma de Criança deixa o menino naquela imensidão de brinquedos e vai atender o cliente que o espera.
O caminhão azul. Da cor do céu. E do mar. Azul. O menino se diverte com o brinquedo, enquanto o tempo passa. Então ouve uma voz:
Ei menino, você me chamou?”
Quê?”, - pergunta o menino olhando em volta.
Estou aqui.”, - diz a voz no meio dos bonecos de madeira.
O menino vê o gnomo e sorri.
O que quer? Faça um pedido?”
O menino continua sorrindo.
Você não acredita? Vamos, faça um pedido, garoto!”
Ele tem nove anos. E acredita em gnomos, fadas e feiticeiros. Então, pede um pai para brincar com ele de carrinho. Um pai para jogar bola com ele, no campinho de futebol. Um pai que o faça cócegas, até não aguentar mais. Um pai que o chame de meu filho. Um pai para chamar de pai.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Quanto vale a vida?

Uma viatura da Proteger, a carreta de Zé Carlos, a carreta de João Antunes e outra viatura da Proteger forma o comboio que se precipita na Rodovia Anhanguera. A carga de polietileno que os caminhoneiros transportam é considerada valiosa e, ali naquele trecho, começa a ficar sinistra a viagem.


Mesmo com escolta armada, acompanhando aquela perigosa viagem, Zé Carlos está com um pressentimento ruim. O interminável frio na barriga, a boca seca, o formigamento nas pernas e o coração querendo sair pela boca. Medo. Medo de não sei o quê. O medo se apoderando de Zé Carlos.

A viatura que puxa o comboio faz sinal que vai encostar junto ao meio-fio e pede que os outros veículos que estão atrás, façam o mesmo. Zé Carlos fala no rádio transmissor com João Antunes, dizendo-lhe que tem alguma coisa de errado com a escolta. O colega e amigo responde que fique tranquilo e encoste também. Todos encostam junto ao meio-fio e ligam o sinal de alerta em seus automóveis e caminhões.

Os seguranças da escolta descem de suas viaturas, imediatamente retiram os adesivos de identificação e rapidamente instruem os caminhoneiros de que a escolta agora ficará atrás, a uma certa distância, disfarçada entre os veículos que trafegam a BR 050.

Os caminhoneiros e a escolta armada e disfarçada seguem viagem. Zé Carlos não se conforma com os rumos do comboio. O medo continua, mas a sensação é outra. Ele pensa na esposa, nos filhos, no cachorro, no gato, nas despesas da casa, na faculdade da filha, no cabeleireiro que sua mulher frequenta uma vez por semana - no salão de beleza mais caro do shopping center, nos cursinhos de preparação para o exame da OAB, que o filho faz há seis anos, e nunca passa. Mãos e rosto suando frio. Zé Carlos lembra de quando adquiriu sua carreta Scania, foram tempos de economia, anos de trabalho árduo e horas- extras. Sempre quis dar o melhor para a família. Agora sente um desprezo pelas futilidades que sustenta com o suor do seu trabalho e o perigo das estradas, um desprezo por si mesmo. Aperta com força a direção do caminhão com as mãos molhadas. Pisa com força no acelerador. Pensa em dar um jeito na própria vida. Na vida da cada ingrato da família. Pisa mais no acelerador. Parece estar sonhando. E no sonho vê um automóvel preto com vidros escuros que se aproxima da janela do caminhão. O vidro da janela desce e os homens do automóvel preto apontam-lhe fuzis. E ele pisa fundo, muito fundo no acelerador. Sente que vai ser o fim. Mas no mesmo instante a escolta armada (disfarçada) surge atirando ferozmente com suas escopetas e fuzis contra o automóvel preto, que capota na pista.

Zé Carlos reduz a velocidade até parar. Treme ao assistir o tiroteio. E vê pelo espelho retrovisor o automóvel preto metralhado e com as rodas para cima. A escolta aproxima-se para averiguar se há sobreviventes. Os seguranças descem das viaturas. Os bandidos, gravemente feridos, gemem de dor. É o fim, o fim dos bandidos . Um dos seguranças tira do cinturão uma pistola e descarrega a munição nos homens, corre para a viatura e faz sinal para seguirem viagem.

Agora que o comboio se forma como um comboio de verdade, Zé Carlos pensa com menos medo e mais decisão... Meu Deus, quanto vale a vida? Isso ele não sabe, mas tem a certeza de que esta é sua última viagem.

sábado, 20 de agosto de 2011

O retorno


Diante do portão gradeado, aperta com força o molho de chaves que se avoluma na mão direita. Antes de separar a chave do portão, olha para o alto. As nuvens e o céu são sombrios e escuros. O vento bate nas árvores, derruba as poucas folhas que ainda restam.

Anoitece. A paisagem é triste.

Dois giros com a chave na fechadura, a mão toca o trinco enferrujado e o portão range. Os passos acompanham as batidas do coração e o frio na barriga. A porta de madeira, depois de anos fechada, fica escancarada.

Estático, no corredor da casa, tenta ouvir diálogos de outrora. Nada. A ausência de ruídos é total e profunda. Bate palmas, força uma tosse, um pigarro. Precisa quebrar aquele silêncio aniquilador. Olha em volta e vê na meia-luz – que a porta aberta proporciona, através dos postes de luz das ruas – os móveis intactos, exatamente como nos tempos em que ali vivia.
A porta é fechada e a escuridão toma conta da sala de estar. Tira do bolso um isqueiro e o aciona. Caminha com a pequena chama em direção ao castiçal postado à mesa. Acende as velas e um foco de luz se abre, iluminando o ponto que denuncia objetos de longa data, espalhados no tampo da mesa.
Fecha os olhos e inspira profundamente o ar da sala. O ar é fechado, velho e escuro. O ar mofado atiça a memória. As imagens e os pensamentos povoam a mente por um longo tempo.
Abre os olhos. Mira a luz de velhas derradeiras. As mãos deslizam na mesa e sentem folhas de papel amassados, lápis, cadernos e livros que trazem da infância as lições de casa.
Nas reminiscências um pai supervisiona as atividades escolares e um colo de mãe afaga um menino na beira da cama, antes de dormir.
O corpo ainda na cadeira. Corpo inerte e coração com batidas fortes e descompassadas. Agora os dedos que descansavam no tampo da mesa deslizam para as pernas e seguem para o bolso.
No bolso os dedos recolhem uma fotografia e retornam o caminho anterior, apertando o papel, sentindo a textura.
Os olhos compenetrados na imagem. Na foto um homem e uma mulher com uma criança no colo, parecem estar muito felizes. Os olhos, antes vidrados, começam a ficar marejados de lágrimas e o foco da luz de velas vai morrendo até a completa escuridão.
A fotografia é guardada no bolso. As mãos vão tateando as paredes acompanhando o caminhar compassado até a porta.
As mesmas mãos que tocaram os trincos e as fechaduras enferrujadas e os mesmos pés que o conduziram àquele local, dobram a esquina e desaparecem.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Diante do espelho

No banheiro do consultório médico, lavo o rosto e fico um longo tempo diante do espelho.
Vejo um homem cheio de agonia e dor. O espelho imita o sofrimento do homem como a arte imita
a vida.


Nascimentos, casamentos, óbitos...
Documentos em folhas de papel e um filme com cenas de tudo o que viveu até agora.
E o famoso túnel com a luminosidade ao fundo...


Fecho os olhos por um tempo e os abro para acreditar que no espelho há um sorriso e uma boca que diz: "trocaram o prontuário médico..."




segunda-feira, 5 de julho de 2010

Na cidade grande



Homem e mulher são os protagonistas. O espaço é a cidade grande. Os dois têm o passado em comum e tudo para colocar a perder. Ideias e atitudes estúpidas.



18h00. Ele sai do trabalho furioso, não era aquilo que ele queria. Nunca pensou em trabalhar naquele ramo. Muito incômodo, e além disso, não compensa. Muitas despesas. Antes de pegar o carro, compra umas cervejas em lata no supermercado, ao lado da firma.


Bebe três latas antes de ir ao estacionamento. Entra no carro e liga o som. Abre outra cerveja. A música o faz lembrar de quando morava no interior e se reunia na garagem de casa para ensaiar com a banda. Toma os últimos goles, baixa o som e dá partida no automóvel.


Dirige sem pressa na avenida movimentada. Parece estar mais calmo. Porém relaxa por pouco tempo. A música da faixa seguinte do cd o faz vibrar. Tem mais recordações: os agitos, as loucuras com os camaradas, quando subia o morro – dois anos atrás - para buscar o pó. Para na sinaleira. Decide mudar o itinerário.


***


17h35. Ela acorda, coloca uma música no microsistem no volume máximo e vai ao banheiro tomar uma ducha. Enquanto lava-se bem, fecha os olhos e lembra de quando morava no interior e odiava morar lá. Odiava a família. Recorda que um dia dissera a mãe que saíria daquela bosta de cidadezinha, que seria uma modelo famosa e ganharia muito dinheiro. Termina o banho, seca o corpo e, daqueles pensamentos surge uma ponta de melancolia.


Caminha pelo apartamento. Remexe gavetas à procura dos papelotes. Vai aos armários, ao guarda-roupa. Nada. Abre a bolsa e a vira na cama. Nada. Um leve desespero. Corre para estante e pega a garrafa de uísque e enborca direto num longo gole. Volta às gavetas e encontra três papelotes. Abre-os avidamente e faz grossas carreiras sobre tampo de vidro da mesa.


Fissurada. Veste a calcinha. Uma carreira. A minissaia. Outra carreira. Tamanha fissura que, entre uma e outra carreira do pó, veste-se para o trabalho.


Avenida movimentada. O táxi para no semáforo. A mulher está agitada, parece um rádio. Pede ao taxista para mudar o itinerário.


***


Não era aquilo que queria para a sua vida, pensa o homem quando muda de ideia, já estava no beco, próximo à boca do Julião, para pegar a droga.


Dentro do táxi a mulher está eufórica, enlouquecida por mais e mais doses de prazer, esquecera dos clientes da casa noturna. Os clientes que bancam o apartamento, as roupas da moda e a cocaína.


Tudo a perder. Tudo. Não tem mais volta. Nem arrependimentos. Taratatatatá. O tiroteio começa no morro. Taratatatatá. Como os fogos de artifício na virada do ano.



sexta-feira, 4 de junho de 2010

Olhares perros


Debaixo de um sol escaldante, sinto o bafo quente do asfalto no rosto e uma dor de cabeça dos diabos. Os sapatos apertados. Buzinas intermináveis acionadas por gente neurótica.

Calor insuportável. Enquanto percorro a gigantesca escadaria da Borges de Medeiros, os pensamentos invadem minha mente. Penso em tirar os sapatos e lançá-los para longe dali, arrancar o paletó, tirar a camisa e ficar mais à vontade.
As escadas são intermináveis. Além dos pés inchados, as pernas doem muito. 
Buzinas, roncos dos automóveis, gritos e estrondos. No fundo dessa poluição sonora, um rosnado tão próximo. Olho para os lados e não vejo nada.
Subo mais lances da imensa escadaria sem olhar para os lados. Latidos de cães ferozes em meus ouvidos. E os sons  cada vez mais fortes.
Já estou na Duque de Caxias, em frente ao edifício Morzart. Um pouco perturbado, toco o interfone. Espero a voz de resposta do outro lado da linha. O mesmo ladrar de cães ferozes de antes. Tremo e suo frio. Segundos depois, a voz de um homem ordena subir.
Elevador. Um... dois... três... quatro...
O décimo oitavo andar está distante. Inspiro e tento recuperar o fôlego e me acalmar. Penso por um instante em desistir, e apertar o décimo sétimo e descer. Ainda há tempo. Estico o braço esquerdo, mas não tenho coragem prosseguir a ação. Solto o braço, que fica como chumbo, abandonado, encostado na cintura. Fico estático até o elevador parar no décimo oitavo andar e abrir.
Passos hesitantes no corredor e desconforto. O coração acelerado e aos pulos. Dificuldade para respirar. Direciona-me ao cento e dezoito. Inspiro o ar longamente e o liberao aos poucos... Suspira... Olho para o número da porta, conto até três... Inspiro novamente e solto o ar com rapidez. 
Tomo coragem e, ao mesmo tempo em que aciono a campainha, a porta se abre e de dentro do apartamento surge um cão de raça e feroz...
Nenhum ruído desta vez. 
Apenas os meus olhos e os do cão  se encontram.Olhares perros.

domingo, 30 de maio de 2010

Shakespeare, tragédias, amores

Econtrei Bianca imóvel na cama. Estava com os olhos estáticos, direcionados a um ponto fixo na parede. Não falava nem se mexia. Parecia estátua. Virgem pálida.

Sentei na beirada da cama e os meus pensamentos e levaram ao passado.

Foi no intervalo da faculdade. Eu estava indo à biblioteca, pensando nos livros que precisava pesquisar.

Distraído, esbarro numa notável menina.

Peço desculpas.

Olho com atenção para a vítima desse incidente. Vejo que está está calma e sorri para mim. Parece uma menina de uns quinze anos. Saia azul-marinho, blusa branca, meias três-quartos.

Torno a me desculpar.

Ela diz que tudo bem, que às vezes estamos no mundo da lua.

Risos.

Nossos olhares se encontram.

Perco-me nos seus olhos azuis.

Ela se apresenta como se estivesse respondendo a uma entrevista:

- Bianca, 19 anos, signo de leão, faço artes cênicas.

- Dalton, 29 anos, dublê de poeta, empresário e estudante de direito, falei, entrando na brincadeira.

Fui arrebatado pela beleza de Bianca. Atingido pela seta de Cupido. Penetrou na alma. Feriu. Infeccionou. Fiquei doente. Pela primeira vez me apaixonei de verdade.

Nunca mais consegui esquecer a bela Bianca. Todos os momentos que passamos juntos. No teatro, os ensaios nos quais eu ficava impaciente e com um torturante ciúme quando ela representava cenas íntimas.

A primeira vez que nos beijamos. Foram beijos de sugar a vida.

Nossos longos passeios pelos cinemas e barzinhos. Nossos piqueniques românticos. Jantes à luz de velas. As cartas de amor que ela me escrevia. Os poemas que eu fazia para ela.

Amei Bianca intensamente. Tanto que não percebi horas, dias, meses, anos, décadas que se passaram. Amor intenso...

Agora Bianca estava ali, linda como sempre. Sem mover um só músculo, naquela cama. O nosso ninho de amor.

Minha adorável Bianca! Não diz uma única palavra. Sem mover o maravilhoso sorriso nos lábios.

Está gélida, tesa, inerte.

Com minhas mãos trêmulas, pego Bianca nos braços.

Fale comigo, meu amor!

Shakespeare. Tragédias. Amores.

Somos tão jovens para dizer adeus...

Shakespeare. Tragédias. Amores.

Shakespeare martelando minha cabeça. Abandone-me solidão, quero meu amor de volta. Shakespeare. Tragédias. Amores.

Mil imagens em minha mente e a cabeça latejando sem parar.

Shakespeare. Tragédias. Amores.

Saio do quarto e em poucos minutos retorno com o revólver na mão.

Shakespeare. Tragédias. Amores.

Vou encontrar meu amor...

Despenco dilacerado. Começa a ficar escuro...


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Tatuajes en mi cuerpo

Aguardo que vuelves del trabajo para decir que te quiero. Invitarla al bar donde leemos nuestros autores elegidos y tomamos cerveza y fumamos narguile y a veces nos quedamos un poco borrachos.

Los recuerdos de nuestra historia no es sencilla, pero notable. Yo sé que leerbesarleer es nuestro lema. Mientras, tenemos siempre el antes y después. Yo me gusta lo que está entre el antes y después.

Recuerdo la primera vez cuando llegaste, eres un ángel caído del cielo. No necesitábamos de “ese es Júlio” y “esa es Maga”, supimos todo. Nadie dijeron. Saber sin saber, con sonrisas y miradas.

Nuestro encuentro en la noche. Un baño rápido y un táxi na esquina. Llegué antes, y tu venías con sonrisa muy lindo y una impresionante mirada. Abrazos, cumprimentos y besos en la mejilla. Y cervezas y miradas penetrantes. Y diálogos a respeto de autores y obras y peliculas. Y imaginaciones.
Una lluvia tranquila en el fin de la noche. Y una calle mojada y besos mojados fuertes y salvages. Saliva y lluvia.Tu bello vestido negro mojado. Besos y carícias. Y tu siempre linda.

En apartamiento viño, carícias y Chico Buarque. Recuerdo que habías mordido mi cuerpo dejando señal como tatuaje, y lluego hicimos el amor en el sofá de la sala.

Tu venias siempre con los dientes, haciendo más tatuajes en mi cuerpo. Estabas muy salvage.

Ahora estoy sólo y aguardo que vuelves del trabajo para decir que te
quiero.