quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Minha Ilha

Ontem reli Kafka e chorei. Não consegui segurar as lágrimas que iam me escapando. Aproveitei e fugi para a minha Ilha. É solitário, angustiante às vezes, mas na minha Ilha há reminiscências de outros tempos. Tenho um acerto de contas para fazer e preciso pensar, localizar melhor os fatos passados. E as atitudes.

Sozinho na minha Ilha. Sinto um buraco no peito. Enquanto isso, milhares de imagens invadem minha mente.

É Natal. Uma criança de três ou quatro anos, a mãe e os irmãozinhos esperam avidamente pelo pai que está longe de casa há dias. O pai retorna à casa com presentes para as crianças. A criança de três ou quatro anos ganha uma cadeirinha cheia de doces e com a seguinte frase talhada na madeira: “Eu sou do papai.” A criança de três ou quatro anos fica imensamente feliz e agarra-se aos pés do pai que a empurra para o chão e vai para o quarto com a mãe. A criança de três ou quatro anos fica chorando, sentada num canto da sala, enquanto as outras crianças pulam e divertem-se com seus presentes. O pai e a mãe permanecem por duas horas no quarto e depois saem. Ele despede-se de todos e diz que vai ficar fora por uns tempos.

Nenhuma data precisa. Apenas dias e anos significativos. O menino anda solto, livre em suas peripécias. Banha-se na sanga, localizada nas terras do Chimitão. A água é poluída, mas sente-se alegre e faz festas com os dejetos do córrego. Jogos de futebol no campinho e surra durante o jogo. Nariz sangrando. Em casa, mais surra e vergões na bunda e nas costas. O menino está sendo levado pela irmã maior à casa da tia. No caminho, ao atravessar a rua, o menino solta-se das mãos da irmã e é atropelado por um Monza. É levado ao hospital e fica bem. Ganha uma bola de futebol do homem que conduzia o carro que o atropelou. Logo poderá jogar futebol com sua bola nova, sozinho, sem apanhar.

O menino está crescendo. Quase um homenzinho. Depois de anos o pai aparece com um tio. Traz consigo uma caixa de ferramentas para construir uma peça de alvenaria. O pai permanece na casa por uma semana, ajudando o tio na construção. O menino se encanta com as ferramentas. Aproxima-se aos poucos dos homens com uma inifita curiosidade.

“Sai daí guri, vá brincar em outro lugar”, diz o pai com rudeza para o filho. O menino continua do mesmo jeito ali, como que hipnotizado pela peculiaridade daquelas ferramentas.

“Sai daí guri!” O menino não entende nada de horizontais ou verticais, ou medição de distância, mas pega um prumo e começa a brincar. Suspende pelo cordel o peso de formato de peão. Depois senta no chão de terra vermelha, olha por um longo tempo o peão e vê que tem uma rosca. Abre o peão e tira os chumbinhos de dentro. O pai vê o que o menino faz e se enfurece. Grita com ele e, em seguida, desfere-lhe pontapés com ira. Apanha do chão uma espia de aço e a faz de chicote. Três ou quatro chicoteadas nas pernas e na bunda do menino até verter sangue. As pernas e a bunda, com o tempo, cicatrizam. A raiva do menino pelo pai, não.

Todos velavam o pai com tamanha tristeza e desespero. Não era nenhuma capela, mas o ínfimo galpãozinho dos fundos da casa. As meninas choravam. A mãe e os tios também choravam a perda daquele homem. O menino, não. O menino apenas sorria. As cobras, dentro do caixão, enroladas no pescoço, pernas e mãos do pai. E o menino sorria. Achava o pai lindo, dentro do caixão.

Me dou conta de que estou na minha Ilha, e nada fiz para mudar a situação. O buraco do peito continua. Parece maior. Tenho medo. Preciso me organizar, planejar a memória. Tenho medo que o vendaval venha mais intenso. Tenho medo. E culpa. Do abraço terno que espero desde a infância. Tenho medo das tortas relações e decepções. Tenho medo de me tornar um Gregor Samsa. Medo da imobilidade. Da Metamorfose.

Descobri que na minha Ilha não existe culpa. É nela que posso criar aquilo que gosto, que imagino e o que desejo.

Olho para o mar que rodeia a minha Ilha e digo num tom de despedida as palavras de Kafka: “ ...Eras para mim a medida de todas as coisas...”

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