sexta-feira, 10 de julho de 2009

Cotidihumano


Ficou horas na frente do espelho.
Estátua.

Quando se deu por conta viu um rosto sedutor. Não gostou disso. Procurou outros traços para satisfazer-se.

Olhou profundamente aquele par de olhos negros e viu ondas negras - no ir e vir - da imensidão do mar. Por um tempo contemplou aquela imagem.

O mar revolto quis sair de dentro do espelho.

As pernas amoleceram, o coração disparou e os olhos queriam sair das órbitas.
Aguentou firme. Sobreviveu ao naufrágio.

O mesmo rosto atraente estava ali, diante do espelho. Carecia de intenções que o tirasse dali. Tinha pensamentos secretos, e queria mudar alguma coisa em si.

Não suportaria por muito tempo naquela posição. As pernas, agora doíam muito. Sentia prazer na dor, mas logo perderia o equilíbrio e cairia .

Turbilhão de pensamentos e sentimentos. Ataque de ansiedade, febre, delírio, lembrança de outras angústias e insônias. Um trator passando por cima.

Caiu.

Estendido no chão, um vendaval de imagens.

Levantou-se e olhou mais uma vez o espelho.

“De agora em diante vou ser outro”, ele disse para o espelho.

Deu um grunhido e depois uma gargalhada medonha.

“Vou ser o que eu inventei, não o que criaram para mim”, continuou ele.

Foi ao banheiro com uma sacola e abriu as caixinhas. Lexotan, Lorax. Dalmadorme, Dormonid. Rivotril. Válium. Aspirina, Paracetamol, Dorflex, etc. O vaso engoliu tudo.

Pegou todo o dinheiro que, à tarde havia sacado no caixa eletrônico, e foi para um bar.

4 comentários:

  1. Boa:
    “Vou ser o que eu inventei, não o que criaram para mim”, continuou ele.

    Gostei desse trecho.

    Mas teus contos sempre terminam em bar?
    Má influencia de andar com uma jornalista!
    Heheheeh

    Um abraço!

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  2. Como comentar sentimentos? Não podemos. Eles são tão pessoais, tão íntimos... tuas palavras revelam sentimentos que dispensam comentários.

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  3. Que as estrelas me perdoem, mas preciso falar com mais alguém.Não sei como fiz aquilo. Na verdade tudo foi muito rápido, era uma brincadeira que passou dos limites. Quando me dei conta já estava acontecendo.A minha mão na cintura dele provocando, buscando reações, olhares... alguma coisa que me fizesse sentir viva.Na minha (hoje extinta) inocência pensei que as coisas não passariam daquele joguinho, porém me enganei. Sendo ele mais vivido, logo mostrou que estava gostando e me deixou ir adiante. Não demorou muito tempo e logo senti o gosto e o calor daquela boca. Que boca, que corpo, que calor... Enlouqueci de desejo. A paixão tomou conta de meu corpo, da minha alma, da minha vida. Eu sabia que daquele momento em diante eu nunca mais seria a mesma pessoa. Deixei minha religião de lado, questionei tudo e todos, passei a não acreditar em nada e ao mesmo tempo acreditar em tudo. Começou dentro de mim uma luta frenética do consciente contra o inconsciente. O que aconteceu com tudo aquilo que eu acreditava desde a minha infância? Onde foram parar meus valores? Quem me deu autorização para derrubar barreiras que haviam crescido ao meu redor ao longo de anos? Não sei de onde tirei tanta força para enfrentar a mim mesma. Entreguei-me aquele homem como quem se entrega a única coisa que importa no mundo e durante três anos vivi os mais loucos momentos de minha existência. Nunca contei nada a ninguém. Sofri tanto que cheguei a esquecer como era viver um dia sem sentir o calor das lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Procurei conforto em livros e poesias e encontrei. Neruda me ajudou a entender que um amor escondido pode ser tão bem vivido quanto um amor livre. Descobri com Bilac que as estrelas são ótimas confidentes e desabafei.Abri mão de um amor sem limite em nome de todos que me amavam e precisavam de mim. Hoje as lembranças, que insistem em povoar minha mente, são exortadas e substituídas por canções. Não quero lembrar, não quero chorar. Na verdade gostaria de me sentir culpada pelo que fiz, porque só dessa maneira eu poderei ser perdoada.

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